quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Hamurábi

Conquistador temido e político habilidoso, o imperador Hamurábi usava suas vitórias militares para impor a ordem na Mesopotâmia, apoiado no conjunto de leis que marcou a história do direito




O deserto virou mar por um dia em 1754 a.C. Mas a inundação que destruiu Eshnunna, uma das grandes cidades-reinos da Mesopotâmia antiga, não teve nada a ver com a natureza. A catástrofe foi provocada por um homem: Hamurábi, o fundador do Império Paleobabilônico, sexto rei na dinastia de Babel. Conquistador da Mesopotâmia entre 1792 e 1750 a.C., ele já era senhor de um grande território quando, cansado de esperar a rendição de Eshnunna às suas tropas, mandou abrir uma barragem e inundou o local. Essa atitude drástica teria sido um pedido de Marduk, deus nacional de Babel, e dos deuses sumérios Anu e Enlil: destruir a cidade com uma grande massa de água. Oficialmente, os deuses sempre estavam por trás dos atos de Hamurábi, mas quem dava a última palavra era ele mesmo. Graças a sua sabedoria política e a sua habilidade militar, tornou-se um dos grandes líderes da Antiguidade. E o código de leis que usava durante seu governo ficou célebre como uma das primeiras expressões escritas do direito.

A data em que Hamurábi nasceu é desconhecida, mas sabe-se que ele ainda era um jovem quando assumiu o trono de Babel, em 1792 a.C. Naquela época, a cidade era subordinada a outros reis, todos de tradição ou origem semita – como ele, que pertencia ao povo amorita. Quando morreu, 42 anos depois, Hamurábi havia se transformado no soberano de toda a Baixa Mesopotâmia. O território sob seu poder corresponderia, hoje, ao sul do Iraque e a parte da Síria. Não parece grande coisa, mas, há 3 750 anos, esse era quase todo o mundo conhecido pelo povo de Babel – e esse “quase” nunca deixou de incomodar o rei, já que o norte do Iraque, na época chamado de Assíria, foi cobiçado, mas não conquistado por ele. “Hammurabi era um guerreiro, um grande general que ia para a frente de batalha”, conta Emanuel Bouzon, professor de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e autor de O Código de Hammurabi e As Cartas de Hamurábi. “A classe dirigente das grandes cidades conquistadas era morta ou presa, e alguns reis de lugares menores se submetiam.”
Mas só vencer as batalhas não bastava. Era preciso manter a ordem nos territórios conquistados, o que Hamurábi fez brilhantemente. Mais do que um general, ele era um administrador e um legislador, que legou à humanidade um dos mais antigos e importantes conjuntos de leis. Elas estão inscritas numa estela (rocha destinada a receber textos) de diorito negro, que foi encontrada em 1901 numa expedição arqueológica francesa ao Irã. É o famoso Código de Hamurábi, hoje exposto no Museu do Louvre, em Paris. Ele contém 282 sentenças baseadas na tradição oral, nas crenças religiosas e no costume, compiladas por escribas da época. A grande maioria delas provavelmente foi proferida pelo próprio Hamurábi, ao julgar acontecimentos ocorridos durante seu governo. O trecho mais famoso é o que institui a chamada lei de talião, pregando que um criminoso deve pagar por seus crimes na mesma moeda (leia quadro na página seguinte).
A criação e a divulgação de um código legislativo escrito serviram para cristalizar a autoridade do Estado sobre os súditos e, ao mesmo tempo, regular o funcionamento da sociedade. “Com leis redigidas, definem-se as relações entre os homens, assim como as relações deles com suas posses, originando o direito de propriedade”, explica Márcio Scalercio, professor de História da Universidade Cândido Mendes e da PUC-RJ, autor de Oriente Médio – Uma Análise Reveladora sobre Dois Povos Condenados a Conviver. “O Código de Hamurábi não traz as primeiras leis escritas. Mas, daquela época, foram as que melhor chegaram a nós, e elas consagram princípios que duram até hoje, como o valor do testemunho e da prova.”

GUERRA E PAZ

Ao registrar suas leis, Hamurábi não agiu só como legislador, mas como um marqueteiro de primeira, unindo senso de justiça a autopropaganda. Na pedra que contém seus pronunciamentos legais há também um prólogo e um epílogo, nos quais ele se apresenta como um rei “prudente” e “perfeito”, escolhido por deuses como Marduk “para fazer surgir justiça na Terra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco”. Em outra passagem, o rei não hesita em se auto-intitular o “Sol de Babel”.
Como soberano absoluto, Hamurábi controlava cada canto de seu império com uma belíssima rede de informações – tinha representantes em todas as cidades que governava, com quem se comunicava por meio de correspondência. Foram encontradas mais de 150 tábuas com inscrições dele endereçadas a três funcionários de Larsa, uma das cidades que conquistou. Essas “cartas” tratavam de temas como julgamentos de crimes, organização agrícola, distribuição das terras entre os homens e ordens sobre trabalho compulsório. Nada escapava ao olhar do rei, nem mesmo a tosquia de ovelhas em uma cidade distante ou um caso de suborno numa localidade do norte. “Era um reino grande, mas ele sabia de tudo e mandava em tudo, era obedecido em todo canto. Havia assembléias de anciãos, assembléias do povo, mas a palavra final era dele”, diz o historiador Bouzon. “Quando não se chegava a um acordo na sentença de um julgamento, mensageiros levavam o caso até a instância final, que era o próprio rei.”

Além de firmar alianças militares com os reis de outras cidades da Baixa Mesopotâmia, Hamurábi explorava a rivalidade entre eles, fazendo com que se destruíssem mutuamente, deixando assim o caminho livre para seu próprio exército. Depois de tomar uma cidade, ele tratava de pacificá-la: reconstruía edifícios e enfeitava ainda mais o templo do principal deus local, como prova de tolerância religiosa. Costumava também arrebanhar colaboradores entre os próprios habitantes do lugar e colocá-los à frente do governo local. Ganhava, assim, a confiança dos moradores submetidos a seu poder e evitava revoltas.

A faceta de bom administrador se manifestava quando Hamurábi promovia o crescimento comercial e agrícola de seus territórios. Em seu reinado, novos canais para irrigação e navegação foram construídos, e os antigos foram aprimorados. Houve ainda trabalhos de regulagem do curso do Eufrates, um dos rios que banham a Mesopotâmia. Foi com medidas assim que, apesar de muitas vezes ter imposto seu domínio pela força, o líder babilônio conseguiu passar uma boa imagem para a posteridade. “Ele propagou a ideologia semita do rei como o bom pastor, preocupado com os ‘cabeças pretas’, como se chamava o povo”, afirma Bouzon. Ao morrer, em 1750 a.C., o comandante deixou o opulento Império Paleobabilônico como herança para seus descendentes. A dinastia ainda durou cerca de 150 anos, mas não resistiu à ausência de seu fundador. Muitas cidades se sublevaram e a Mesopotâmia acabou invadida pelos hititas em 1594 a.C., quando Babel foi saqueada e incendiada. “Enquanto Hamurábi reinou houve paz, mas ela não sobreviveu à sua morte”, diz Bouzon. Acredita-se que a centralização exagerada do governo nas mãos do general tenha tornado muito difícil a tarefa de seus sucessores em substituí-lo.

O código do homem

Para Hamurábi, a punição tinha que ser semelhante ao crime

A chamada lei de talião (talionis, em latim, significa “tal” ou “igual”) apareceu pela primeira vez no Código de Hamurábi,. Ela nasceu de um conjunto de sentenças em que o imperador dizia frases como: “Se um homem livre destruiu o olho de um outro homem livre, destruirão seu olho” e “Se um homem livre arrancou um dente de um homem livre igual a ele, arrancarão o dente dele”. Além dos homens livres, chamados de awilum, a sociedade paleobabilônica tinha escravos e uma classe social intermediária chamada muskênum. Quando um awilum cometia alguma dessas ofensas a um muskênum u a um escravo, também pagava por isso, mas o castigo era mais brando: uma multa. Várias leis de Hamurábi seguiam o princípio do talião. Uma delas determinava que se um filho adotivo renegasse os pais que o criaram, dizendo “Tu não és meu pai, tu não és minha mãe”, teria a língua cortada. Alguns séculos depois, o direto à retaliação ganhou novas versões. No Velho Testamento, no capítulo 21 do livro do Êxodo, está escrito: “Se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento”. Já em 450 a.C., quando a plebe romana exigiu que as leis fossem escritas para que não houvesse favorecimento aos patrícios, surgiu a Lei das 12 Tábuas. E lá estava, no parágrafo 11 da sétima tábua: “Se alguém ferir a outrem, que sofra a pena de talião, salvo se houver acordo”. Apesar de parecer bárbaro, esse tipo de norma foi muito importante para o direito. “A lei de talião é um ensaio de como se estabelecer a pena conforme a intensidade do delito”, explica o historiador Márcio Scalercio. “Todos concordam que a pena para quem rouba deve ser uma e para quem comete assassinato deve ser outra. A diferença é que na maioria das sociedades atuais a lei de talião não existe mais de forma literal.” Mas não em todas. Há países do Oriente Médio em que se paga olho por olho, literalmente. Na Arábia Saudita, no Iêmen e em alguns dos Emirados Árabes, ladrões ainda têm as mãos cortadas.

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